Por Cezar Augusto Rodrigues Costa – Desembargador TJRJ
Julgar nunca é um ato isolado, como se pode imaginar. Todo julgamento realizado pelo Poder Judiciário decorre de um processo dialético com a participação necessária e fundamental das partes, dos advogados, do Ministério Público e dos peritos, sem contar, para não me estender muito, o rol dos construtores do raciocínio jurídico, das lições doutrinárias, da jurisprudência, da pesquisa acadêmica, entre outros atores.
Quando leio uma sentença, ou um acórdão, lá consta a assinatura apenas do magistrado prolator, dando a falsa percepção de que ele é o senhor absoluto das ideias ali contidas, que prescindiram da participação de todos os que no processo atuaram e que ficaram relegados às menções resumidas das suas ações nos relatórios, parte integrante do julgado que goza de muito pouco prestígio, não somente porque não interfere na coisa julgada, mas porque, em muitos casos, especialmente nos julgamentos colegiados, são normalmente esquecidos porque raramente lidos publicamente.
Parece que ao público presente às sessões o relatório e, como se lerá a seguir, até a dinâmica do julgamento, não interessam. Cabe lembrar, entretanto, que nesse público não estão somente as partes diretamente interessadas acompanhadas dos seus patronos, mas estagiários e estudantes de Direito em processo de aprendizagem, pesquisadores do Direito e de sociologia, antropologia, filosofia, psicologia, jornalismo e outras carreiras e ciências realizando trabalho de campo, além do variado público externo que tem interesse nos julgamentos e que ajuda, mesmo que timidamente, a dar publicidade a este importante ato e a prestar as contas da função judicante à sociedade.
Convém destacar que mesmo que desprezado todo este contingente numeroso e heterogêneo de pessoas que acorrem às sessões de julgamento, restringindo-se às partes diretamente envolvidas na causa que se está julgando e que operam as suas pretensões por meio dos advogados públicos e privados, a estes é possível não somente a sustentação oral na tribuna, mas, mesmo nas hipóteses em que por disposição legal esta é vedada, podem apresentar questões de ordem e dar e requerer esclarecimentos capazes de mudar o rumo dos julgados.
Assim, seja porque o julgamento envolve um número muito grande de atores, ou porque no seu desenrolar será sempre possível a intervenção das partes através dos seus patronos, a realização presencial mostra-se a verdadeiramente recomendável, posto que uma videoconferência não possibilita a reunião satisfatória de tantos interesses. Entretanto, a necessidade de uma jurisdição mais célere e o enorme número de processos em curso parecem justificar o incremento dos julgamentos virtuais pelo país, a começar pela Corte Suprema, que desde 2007 o adota, inicialmente para poucas hipóteses, que aos poucos foram se ampliando até o mais recente ato, a Resolução 642, de 14 de junho de 2019, que vem servindo de paradigma para a regulação nacional.
A Lei 11.419/2006 instituiu o processo eletrônico e, em 2007, o Supremo Tribunal Federal criou o plenário virtual visando à solução de processos remetidos à Corte para deliberação sobre a existência de repercussão geral em matéria discutida nos recursos extraordinários. Em 2016, sob a presidência do ministro Ricardo Lewandovski, a utilização do plenário virtual foi ampliada com a Resolução 587/2016, passando a permitir o julgamento de agravos internos e embargos de declaração em ambiente eletrônico. Sob a presidência da ministra Carmem Lúcia, em 2018, o plenário virtual sofreu uma pequena alteração pela resolução 611/2018. Em 14 de junho de 2019, a Suprema Corte, liderada pelo ministro Dias Toffoli, por meio da resolução 642/2019, ampliou os julgamentos para agravos internos, agravos regimentais e embargos de declaração; medidas cautelares em ações de controle concentrado; referendum de medidas cautelares e de tutelas provisórias; recursos extraordinários e agravos, inclusive com repercussão geral reconhecida e demais classes processuais cuja matéria discutida tenha jurisprudência dominante no âmbito do STF.
Observe-se que em três anos foi considerável o aumento da competência para o julgamento virtual, que se espraiando, como vem acontecendo, por todo o território nacional, dá pistas de que não parará por aí, transformando a exceção em regra. Feitas essas considerações, passemos a uma breve análise de alguns efeitos decorrentes da adoção dessa modalidade de julgamento que, para o objeto deste trabalho, vão se limitar ao que diz respeito à ampla defesa e à regulamentação pelo Supremo Tribunal Federal.
Naquela Corte, segundo a Resolução 642/2019, cabe ao relator do caso a decisão de incluir os julgamentos no plenário virtual com as sessões virtuais se iniciando toda sexta-feira, quando o relator coloca no sistema informatizado o recurso que será julgado e o seu voto. A partir daí, os outros ministros têm cinco dias úteis para se manifestar, artigo 2º, § 1º, por meio de quatro opções de voto para cada julgador, artigo 6º: (I) concorda com o relator; (II) concorda, com ressalvas; (III) discorda do relator; ou (IV) acompanha a divergência. O ministro que discordar do relator deve inserir um novo voto, artigo 6º, § 2º.
Agora um ponto muito importante: o ministro que não se manifestar dentro do prazo é considerado como tendo proferido o voto de acordo com o relator, artigo 2º, § 3º. Curioso é que a omissão não leva à presunção de discordância, mas de concordância, caracterizando uma “revelia jurisdicional” para o(s) omitente(s), assim reputam-se fortes os argumentos trazidos pelo relator. Isso sem se saber o porquê da omissão. Fato é que, em um colegiado de três magistrados, se dois se omitem o voto monocrático do relator possibilitará a solução unânime do colegiado, criando o “voto monocrático colegiado”. Essa regra vale tanto para a decisão de mérito em si quanto para a prévia admissibilidade do recurso e, em seguida, para a sua solução definitiva.
Deve ser destacado que no sistema processual constitucional vigente a fundamentação das decisões é um imperativo categórico, conforme o artigo 93, IX, da Constituição Federal, e a decisão omissa desafia o recurso de embargos de declaração, que suspende qualquer outro recurso exatamente porque a jurisdição está incompleta, impossibilitando a ampla defesa, posto não conhecerem as partes o real conteúdo que a decisão nos embargos de declaração finalmente integrará. Assim, se a solução colegiada é fruto da construção dos seus integrantes, é preciso para ter plenitude que se conheça clara e expressamente o posicionamento de cada membro do colegiado.
O julgamento virtual não é absoluto e pode ser convertido em presencial pelo pedido das partes, por ação do relator antes de iniciado o julgamento ou por qualquer dos ministros já com o julgamento em andamento, conforme o artigo 4º da resolução do STF, mas o que se tem observado nos tribunais é um aumento dessa modalidade de julgamento, que tem uma força simbólica muito grande, sobretudo no que se refere aos julgamentos criminais nos quais muito se reclama da flexibilização das garantias constitucionais fundamentais. Não se descuida nesse ponto em apontar que o amplo exercício do direito de defesa é atingido na importante prerrogativa de estar presente aos julgamentos, fazer sustentação e, repita-se, mesmo nas hipóteses em que isso não é possível, prestar e requerer esclarecimentos e levantar questões de ordem.
Recortamos o tema do julgamento virtual para analisá-lo exclusivamente em confronto com o princípio da ampla defesa e nos utilizamos somente da regulação feita pelo Supremo Tribunal Federal. O recorte será agora maior para enfrentar essa modalidade de julgamento na matéria criminal, ressaltando que o argumento valerá, também, para a matéria cível, entretanto, para uma melhor compreensão a especialização sobre uma determinada competência, no caso escolhido a criminal, garantirá uma maior clareza.
De início, convém enfrentar a questão relativa à competência dos tribunais para editar atos eminentemente processuais e que têm a carga vinculante das normas oriundas do Congresso Nacional. Os atos dos tribunais que têm enorme força normativa são os regimentos internos, que visam a estabelecer a composição e a competência dos órgãos internos, mas sempre de acordo com as normas processuais vigentes, cuja competência legislativa é exclusiva da União, por meio do Congresso Nacional. A origem constitucional da função legislativa dos tribunais está no artigo 96, I, a, da Constituição Federal: “Compete privativamente: I – aos tribunais: a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos.”
Estão, portanto, os regimentos internos subordinados: (I) às garantias constitucionais; e (II) às normas de processo. Em relação às primeiras, o artigo 5º da Carta Política está impregnado de normas penais limitadoras, contudo, nos circunscreveremos ao que consta do já mencionado artigo 93, IX: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação. Sobre as normas de processo, o destaque recai sobre o artigo 792 do Código de Processo Penal: “As audiências, sessões e os atos processuais serão, em regra, públicos e se realizarão nas sedes dos juízos e tribunais com assistência dos escrivães, do secretário, do oficial de Justiça que servir de porteiro, em dia e hora certos, ou previamente designados.”
Tanto a norma constitucional quanto a infraconstitucional são muito claras ao limitar o poder legislador dos regimentos internos dos tribunais e, por consequência, das normas a estes subordinadas, como resoluções, atos executivos e outros, determinando que os julgamentos sejam realizados de forma pública e fundamentada nas sedes dos juízos ou tribunais, seja em forma de audiência ou de sessão. E quando o Código de Processo Penal impõe a assistência de escrivães, oficial de Justiça e secretário, não demonstra se referir à assistência remota, que não é compatível com a realização do ato na sede do tribunal.
Interessa apontar que, embora tenha sede constitucional, o poder de legislar dos tribunais não se assemelha ao que detém o Poder Legislativo, que tem nessa atividade a sua função precípua, valendo lembrar que o novo Código de Processo Civil, em vigor no ano de 2015, previa no artigo 945 o julgamento virtual que, no entanto, foi natimorto porque revogado pela Lei 12356/2016, o que pode trazer a indicação de que essa forma de julgamento não integra a vontade popular.
Cabe registrar que no Superior Tribunal de Justiça o regimento interno prevê o julgamento virtual nos artigos 184-A a 184 -H, excetuando-o, entretanto, nos recursos de natureza criminal.
Voltando à ampla defesa, é de se realçar que, além da limitação da atuação das procuradorias durante o julgamento, a sua publicidade somente se dá sobre o resultado final, com o conhecimento a posteriori, e os julgadores nem sempre se reúnem fisicamente para decidir. No julgamento presencial,não somente os interessados diretos conhecem os argumentos contrários e as razões de decidir, podendo, insista-se à exaustão, intervir e requerer esclarecimentos, mas também todos os presentes: as partes, o Ministério Público, os estagiários, os servidores da Justiça, os pesquisadores e o público em geral. Ressalte-se que no caso das sessões presenciais do pleno o Supremo Tribunal Federal normalmente vai além para alcançar não só os fisicamente presentes, mas todos que o acessam pela transmissão ao vivo das suas sessões, o que também faz, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que transmite as sessões do Órgão Especial pelo canal interno 5.
Um outro princípio caro que deve ser lembrado quando o tema é o julgamento virtual é o da colegialidade, que pressupõe debates entre os julgadores, com os vogais esclarecendo suas dúvidas e com argumentação jurídica produzindo o convencimento, o que a troca de e-mails não supre, além dos pedidos de vista, muitas vezes a partir de questões de ordem ou esclarecimentos dos procuradores, fortalecendo a mais ampla defesa.
Como já foi salientado, a utilização da resolução do Supremo Tribunal Federal serviu para desenvolver os argumentos deste ensaio, mas o Superior Tribunal de Justiça, vários tribunais e até órgãos jurisdicionais colegiados fracionários já se anteciparam na regulação do julgamento virtual na rotina dos seus trabalhos. Assim, é preciso muita cautela com essa regulamentação diluída, que deve se subordinar às garantias constitucionais constantes do núcleo duro da Carta Política e se conter dentro da estrita competência para legislar.
Há uma sobrecarga de processos em tramitação na Justiça brasileira que precisam ser decididos com celeridade, e os tribunais têm de dar conta disso com medidas urgentes. Todavia, qualquer proposta de solução deve se submeter ao crivo constitucional, que só se concretiza plenamente nos julgamentos, que estimulam as discussões, a divergência de ideias e o exercício do convencimento, que vão além da solução dos casos concretos para alcançar o aperfeiçoamento do Direito e iluminar as decisões coletivas.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2020-abr-19/opiniao-julgamento-virtual-ampla-defesa