Por Diogo Malan
Atualmente muito se fala sobre a inegável importância das prerrogativas do Advogado criminalista, às quais (merecidamente) são dedicadas edições temáticas de revistas científicas, palestras, livros etc.
Curiosamente, bem menos atenção e tempo são dispensados às contrapartidas dessas prerrogativas: as responsabilidades do Advogado criminalista.
A esse propósito, vem bem a calhar o chamado princípio de Peter Parker, popularizado pelo genial Stan Lee: com grandes poderes vêm grandes responsabilidades (with great power comes great responsibility).
Malgrado tal princípio também seja aplicável a Magistrados, membros do Ministério Público, Defensores Públicos, policiais etc., o recorte deste artigo se limitará às responsabilidades da advocacia criminal.
A primeira responsabilidade (fiduciária) é pelo cliente.
Este, em regra, está sendo submetido às cerimônias degradantes (degradation ceremonies) da sua dignidade pessoal inerentes aos atos de persecução penal (v.g. indiciamento, prisão processual, acusação formal, bloqueio de bens e valores, julgamento midiático etc.). 1
Consequentemente, a persecução penal pode causar efeito devastador na vida pessoal, familiar, profissional e social do cliente, levando-o a estado de grande fragilidade emocional e psicológica.
Assim, o Advogado deve canalizar seu cabedal de conhecimentos jurídicos, empenho pessoal e tempo para assegurar todos os meios éticos e legais indispensáveis à defesa intransigente e vigorosa da liberdade do cliente.
Nessa toada, idealmente o Advogado e o seu cliente estabelecem relação personalíssima de conjugação de esforços para tomar, de modo informado e racional, decisões estratégicas e táticas direcionadas à maximização das chances de resultado processual favorável, com o menor grau possível de ingerência sobre direitos fundamentais do cliente.
O Advogado não defende seu cliente da culpa moral, e sim da culpa legal. Assim, o seu múnus consiste em exigir de autoridades públicas o respeito pelos direitos fundamentais do acusado, a superação da sua presunção de inocência por um standard probatório rigoroso, a proporcionalidade da pena aplicada em caso de condenação etc.
A segunda responsabilidade (institucional) é pelo sistema de administração da justiça criminal, para o qual o Advogado é considerado indispensável pelo artigo 133 do texto magno.
Nesse sentido, o Advogado deve agir como órgão de administração da justiça, que compartilha com o Poder Judiciário e o Ministério Público a responsabilidade pela adjudicação eficiente, justa e racional do caso penal.
Para tanto, o Advogado deve cumprir seu dever de civilidade, entendida como o conjunto de normas de interação social cotidiana adequada entre Juízes, partes processuais penais e seus procuradores, órgãos auxiliares da justiça e terceiros, baseadas em valores tais como decência, respeito, sinceridade, lealdade processual e urbanidade. 2
Pode causar certa perplexidade a ideia de que o Advogado possui responsabilidade tanto pelo cliente quanto pelo sistema de administração da justiça criminal, ante o risco de colisões entre essas duas responsabilidades. De fato, essa é uma das questões mais tormentosas da deontologia advocatícia, suscitando questões complexas e que não comportam soluções reducionistas.
Não obstante, dualidade similar também permeia a instituição do Ministério Público, que atua de forma objetiva na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (custus legis) e como legitimado exclusivo para o ajuizamento da ação penal de iniciativa pública (parte processual).
A terceira responsabilidade (autorresponsabilidade) é por ele próprio. 3
Nesse diapasão, o Advogado deve sempre buscar a autogratificação e a paz de espírito decorrentes da consciência de ter se dedicado, de corpo e alma, à defesa técnica do seu cliente, independentemente do desfecho da causa penal.
A advocacia criminal não deve ser escolhida por expectativas de remuneração, status social, projeção midiática etc., e sim por genuína vocação para a defesa intransigente e vigorosa do direito de liberdade, e coragem para fazê-la mesmo ante grandes adversidades (v.g. incompreensão social, táticas persecutórias agressivas, julgamentos midiáticos etc.).
Com razão estava o grande Sobral Pinto, ao aduzir que a advocacia – especialmente a criminal, ousamos acrescentar – não é profissão para covardes. Em casos extremos, pode ser necessário exercer o dever de indignação (duty to outrage).
O Advogado também deve, tal qual os Martell de Dorne, ser insubmisso, não prestando vassalagem a autoridades públicas, nem colegas.
O verdadeiro criminalista sabe que seu único suserano é o direito de liberdade. Para tanto, ele deve desenvolver olhar aguçado sobre excessos do poder punitivo e fazer críticas – respeitosas, porém incisivas – a tais atos excessivos, sem receio de desagradar quem quer que seja.
Além de vocacionado, corajoso e insubmisso, o Advogado deve ser autoconfiante o bastante para não se importar com críticas alheias. Assim como ocorre na crítica esportiva, literária, musical etc., o criticismo dirigido ao Advogado não raro é feito por aqueles menos competentes.
A derradeira responsabilidade (política) é pelo Estado Democrático de Direito e suas instituições, visando ao aperfeiçoamento do sistema de administração da justiça criminal, de sorte a torna-lo cada vez mais democrático, eficaz, humano e racional. 4
Cabe ao Advogado investir em sua própria formação acadêmica, para poder prestar colaborações qualificadas ao processo legislativo, à dogmática interpretativa, sistematizadora e crítica, à democratização do sistema processual penal, à solução do encarceramento em massa e do estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário etc.
As quatro sobreditas responsabilidades são importantes para a compreensão do relevante múnus público do Advogado: a defesa intransigente e vigorosa dos direitos fundamentais de pessoas em regra desprezadas pela sociedade e, em última análise, do próprio regime constitucional de liberdades públicas, enquanto organismo pulsante limitador do arbítrio, da opressão e da tirania. 5
1 GARFINKEL, Harold. Conditions of successful degradation ceremonies, In: The American Journal of Sociology, Chicago, v. 61, n. 05, pp. 420-424, 1956.
2 MALAN, Diogo. Civilidade no processo penal, In: SANTORO, Antonio Eduardo Ramires; MALAN, Diogo; MADURO, Flávio Mirza; (Orgs.). Crise do processo penal contemporâneo: Escritos em homenagem aos 30 anos da Constituição de 1988, pp. 111-133. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018.
3 WEBB, Dan. The responsibility of a criminal defense attorney, In: Loyola of Los Angeles Law Review, n. 30, pp. 131-138, nov. 1996.
4 LEFCOURT, Gerald. The responsibilities of a criminal defense attorney, In: Loyola of Los Angeles Law Review, n. 30, pp. 59-68, nov. 1996.
5 ARGUEDAS, Cristina. Duties of a criminal defense lawyer, In: Loyola of Los Angeles Law Review, n. 30, pp. 07-12, nov. 1996.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2020-abr-22/advocacia-criminal-responsabilidades