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Ação Penal 863 – SP – CASO PAULO SALIM MALUF

Lavagem de dinheiro, prescrição e crime permanente
A Primeira Turma, em conclusão de julgamento, condenou, por unanimidade, réu parlamentar à pena privativa de liberdade de 7 anos, 9 meses e 10 dias de reclusão em regime inicial fechado e multa de 248 dias-multa, no valor de 5 vezes o salário mínimo vigente à época do fato, aumentada em 3 vezes, pela prática do delito de lavagem de dinheiro.
Na denúncia, considerando o que pende de exame pelo Supremo Tribunal Federal (STF), os fatos delituosos foram organizados em cinco grupos fático-delitivos.
Os dois primeiros grupos referem-se à ocorrência de ocultação e dissimulação da origem, natureza e propriedade de recursos ilícitos, um entre 1993 e 2002, em contas-correntes localizadas na Suíça, e outro entre 1997 e 2001, em contas localizadas na Inglaterra.
O terceiro fato delituoso reporta-se à conduta do acusado, na qualidade de diretor de empresa registrada nas Ilhas Virgens Britânicas, de orientar e comandar a conversão de ativos ilícitos em ADRs (“American Depositary Receipts”) de outra pessoa jurídica, com o fim de dissimular sua utilização.
O quarto fato delituoso relaciona-se à ocorrência de imputações de ocultação e dissimulação da origem de recursos ilícitos, bem como da movimentação e transferência desses valores, a fim de ocultar e dissimular sua utilização, entre 1997 e 2006, por meio de doze contas-correntes na Ilha de Jersey.
O quinto fato delituoso diz respeito à conduta do acusado, na qualidade de representante e beneficiário de pessoa jurídica registrada nas Ilhas Virgens Britânicas, de transformar ativos ilícitos em debêntures conversíveis em ações, com o fim de dissimular sua utilização, no período de 29.7.1997 e 30.7.1998 (vide Informativo 864).
Preliminarmente, a defesa requereu o desentranhamento do “parecer técnico” que acompanhava a denúncia e a conversão do feito em diligência para a realização de perícia oficial pelo Instituto Nacional de Criminalística. Alegou que o referido documento não se presta como prova válida, a substituir o exame de corpo de delito a que se refere o art. 159 (1) do Código de Processo Penal, que deve ser elaborado por perito oficial.
O Colegiado, por maioria, rejeitou a preliminar arguida. Ressaltou que o referido parecer, embora se autoqualifique “técnico”, não ostenta a característica de prova pericial. Trata-se apenas de descrição e compilação dos documentos acostados nos outros 140 volumes apensos aos autos principais. A materialidade delitiva está provada pelos documentos contidos nos autos, e não pela descrição e compilação no parecer. Salientou não haver qualquer opinião técnica especializada nele contida capaz de influir na compreensão sobre a existência, ou não, da atividade criminosa.
Vencido, nesse ponto, o ministro Marco Aurélio (revisor), que admitia a preliminar. Para ele, o laudo técnico elaborado por perito oficial é indispensável para a instrução do processo, por se tratar de um crime que deixa vestígios.
Nada obstante, o Colegiado acolheu a manifestação da defesa relativamente à ocorrência de prescrição do primeiro, do segundo, do terceiro e do quinto fatos delituosos constantes na denúncia. Salientou que o acusado possui mais de setenta anos, fazendo incidir a regra do art. 115 (2) do Código Penal (CP), que manda computar os prazos prescricionais pela metade. Assim, haja vista ser a pena máxima cominada aos delitos imputados de dez anos de reclusão e, em 29.9.2011, quando o STF recebeu parcialmente a denúncia, já haver se passado mais de oito anos, a punibilidade desse conjunto de fatos está extinta, nos termos dos arts. 107, IV, e 109, II, do CP (3).
A Turma entendeu não estar extinta a punibilidade pela prescrição quanto ao quarto fato imputado ao acusado e condenou-o pela prática das condutas descritas no art. 1º, V e § 1º, II (4), da Lei 9.613/1998 (redação anterior à Lei 12.683/2012).
Pontuou que o crime de lavagem de bens, direitos ou valores praticado na modalidade de ocultação tem natureza de crime permanente. A característica básica dos delitos permanentes está na circunstância de que a execução desses crimes não se dá em um momento definido e específico, mas em um alongar temporal. Quem oculta e mantém oculto algo prolonga a ação até que o fato se torne conhecido.
A Turma destacou que o prazo prescricional referente ao quarto fato delitivo imputado tem sua contagem iniciada, nos termos do art. 111, III, do CP (5), em 11.5.2006, data em que o órgão acusador tomou conhecimento de documentação enviada ao Brasil pelas autoridades de Jersey. Desse modo, mesmo que se considerasse instantânea, de efeitos permanentes, a ação de ocultar os bens, direitos e valores, o crime narrado no quarto fato não estaria prescrito. Ainda que parte da doutrina entenda consumar-se o delito de lavagem apenas no momento em que ocorre o encobrimento dos valores, compreendendo a permanência do escamoteamento mera consequência do ato inicial, reconhece-se que, se houver novas movimentações financeiras por parte do agente, essas últimas são atos subsequentes de uma mesma lavagem que começou com o mascaramento inicial.
Asseverou que as provas dos autos permitem perquirir o caminho percorrido desde a obtenção criminosa dos recursos financeiros. Além disso, possibilitam verificar como as empresas relacionadas nos autos foram utilizadas para a constituição de contas e fundos de investimento com a finalidade de ocultar e dissimular a procedência criminosa de valores e, ainda, de transformar os ativos ilícitos em aparentemente lícitos.
Nesse contexto, entendeu estar devidamente constatada a materialidade, bem como a autoria do réu, que, entre 1998 e 2006, de forma permanente, ocultou e dissimulou vultosos valores oriundos da perpetração do delito de corrupção passiva. Para isso, utilizou-se de diversas contas bancárias e fundos de investimentos situados na Ilha de Jersey, abertos em nome de empresas “offshores”, com o objetivo de encobrir a verdadeira origem, natureza e propriedade dos referidos aportes financeiros. Configura-se, assim, a prática do crime de lavagem de dinheiro.
Apontou que a conduta do acusado foi dolosa, por visar à ocultação e dissimulação da origem criminosa dos valores que movimentou e manteve ocultos no exterior até, pelo menos, o ano de 2006.
Vencido, no tocante à prescrição, o ministro revisor. Para ele, a lavagem de dinheiro é crime de natureza instantânea com efeitos permanentes. O termo inicial da prescrição é a data da prática criminosa e não a da ciência pelo Estado acusador. Assim, ficou caracterizada a prescrição da pretensão punitiva de todas as condutas delituosas descritas na denúncia.
No entanto, superada essa etapa, a votação foi unânime quanto à condenação do parlamentar.
Na primeira fase da dosimetria da pena, o Colegiado identificou vetoriais negativas do art. 59 do CP (6) suficientes para fixar a pena-base acima do mínimo legal, mas ligeiramente abaixo do termo médio, quais sejam: a) O juízo de reprovação que recai sobre sua conduta é particularmente intenso, na medida em que se trata de quem exerce há longa data representação popular, obtida por meio da confiança depositada pelos eleitores em sua atuação. A transgressão da lei por parte de quem usualmente é depositário da confiança popular para o exercício do poder, enseja juízo de reprovação muito mais intenso do que seria cabível em se tratando de um cidadão comum; b) Do ponto de vista da reprovabilidade, igualmente merece destaque negativo, no que diz respeito à capacidade de compreensão da ilicitude do fato, a circunstância de ser o acusado homem de longa vida pública, acostumado com regras jurídicas, às quais, com vantagem em relação aos demais cidadãos, tem a capacidade acentuada de conhecer e compreender a necessidade de observá-las; c) No que diz respeito às circunstâncias do crime, merece maior reprovação o fato de que a lavagem ocorreu num contexto de múltiplas transações financeiras e de múltipla transnacionalidade, o que interfere na ordem jurídica de mais de um Estado soberano. Ainda, a origem pública dos valores lavados é circunstância que impõe um juízo de reprovabilidade mais acentuado; d) Quanto às consequências, estas devem sofrer, nessa fase de aplicação da pena, maior juízo de reprovação quando vão além das consequências usuais dessa modalidade criminosa. Nesse tópico, o crime praticado pelo réu violou o bem jurídico tutelado pelo tipo de forma muito mais intensa do que o usual, tendo em vista a vultuosidade dos valores envolvidos.
Na segunda fase da dosimetria, entendeu configurada a agravante do art. 62, I, do Código Penal, uma vez que o acusado tinha papel primordial na trama criminosa, dirigindo a atividade dos demais agentes, chegando até a se valer do temor reverencial próprio da condição de ascendente para dirigir a atuação dos demais agentes. Considerou, ainda, presente a atenuante prevista no art. 65, I, do Código Penal, tendo em vista que o réu tem mais de 70 (setenta) anos. Vencido, nesse ponto, o revisor quanto à ordem de consideração da atenuante e da agravante.
Na terceira fase da dosimetria, o Colegiado reputou presente a majorante da habitualidade prevista no art. 1º, § 4º (9), da Lei 9.613/1998. As múltiplas transações financeiras realizadas desde o momento em que os valores aportaram nas contas situadas nas Ilhas de Jersey e as inúmeras transferências que perduraram por longo período indicam que o crime de lavagem de capitais, para além de mera reiteração de condutas, passou a se constituir numa prática usual por parte do acusado.
Determinou que o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade, em razão do contido nos arts. 33, §§ 2º e 3º, do CP, bem como em razão de as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP serem desfavoráveis, será o fechado.
Com base no art. 7º, I, da Lei 9.613/98, decretou a perda, em favor da União, dos bens, direitos e valores objeto da lavagem em relação a qual foi o réu condenado, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé.
Com fundamento no art. 7º, II, da Lei 9.613/98, decretou a interdição do condenado para o exercício de cargo ou função pública de qualquer natureza e de diretor, de membro de conselho de administração ou de gerência das pessoas jurídicas referidas no art. 9º da mesma Lei, pelo dobro do tempo da pena privativa de liberdade aplicada, bem como condenou o réu ao pagamento das custas processuais.
Por fim, o Colegiado assentou a perda do mandato de deputado federal do réu, comunicando-se a decisão à Câmara dos Deputados para o efeito do disposto no § 3º do art. 55 (12) da Constituição Federal. Ressaltou que, conforme jurisprudência consolidada da Turma, nos casos de prisão em regime inicial fechado, a decretação da perda do mandato de parlamentar será apenas declarada pela Mesa legislativa. Isso porque, nesses casos, por força do disposto nos arts. 55, III (10), e 56, II (11), da Constituição Federal, como o parlamentar fica material e juridicamente impossibilitado de comparecer às sessões, a perda deve ocorrer não por deliberação política do Plenário, porque não há juízo político a ser feito, mas apenas por uma declaração vinculada da Mesa.
(1) CPP/1941: “Art. 159. O exame de corpo de delito e outras perícias serão realizados por perito oficial, portador de diploma de curso superior. § 1º Na falta de perito oficial, o exame será realizado por 2 (duas) pessoas idôneas, portadoras de diploma de curso superior preferencialmente na área específica, dentre as que tiverem habilitação técnica relacionada com a natureza do exame. § 2º Os peritos não oficiais prestarão o compromisso de bem e fielmente desempenhar o encargo”.
(2) CP/1940: “Art. 115. São reduzidos de metade os prazos de prescrição quando o criminoso era, ao tempo do crime, menor de 21 (vinte e um) anos, ou, na data da sentença, maior de 70 (setenta) anos”.
(3) CP/1940: “Art. 107. Extingue-se a punibilidade: (…) IV – pela prescrição, decadência ou perempção; (…) Art. 109. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo o disposto no § 1º do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se: (…) II – em dezesseis anos, se o máximo da pena é superior a oito anos e não excede a doze”.
(4) Lei 9.613/1998: “Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. (…) V – contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos; (…) § 1º Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal: (…) II – os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere” (Redação anterior à Lei 12.683/2012).
(5) CP/1940: “Art. 111. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr: (…) III – nos crimes permanentes, do dia em que cessou a permanência”.
(6) CP/1940: “Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I – as penas aplicáveis dentre as cominadas; II – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III – o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV – a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível”.
(7) CP/1940: “Art. 62. A pena será ainda agravada em relação ao agente que: I – promove, ou organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos demais agentes”.
(8) CP/1940: “Art. 65. São circunstâncias que sempre atenuam a pena: I – ser o agente menor de 21 (vinte e um), na data do fato, ou maior de 70 (setenta) anos, na data da sentença”.
(9) Lei 9.613/1998: “Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. (…) § 4º A pena será aumentada de um a dois terços, nos casos previstos nos incisos I a VI do ‘caput’ deste artigo, se o crime for cometido de forma habitual ou por intermédio de organização criminosa” (Redação anterior à Lei 12.683/2012).
(10) CF/1988: “Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador: (…) III – que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada”.
(11) CF/1988: “Art. 56. Não perderá o mandato o Deputado ou Senador (…) II – licenciado pela respectiva Casa por motivo de doença, ou para tratar, sem remuneração, de interesse particular, desde que, neste caso, o afastamento não ultrapasse cento e vinte dias por sessão legislativa”.
(12 CF/1988: “Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador: (…) § 3º Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa”.
(13) Lei 9.613/1998: “Art. 7º São efeitos da condenação, além dos previstos no Código Penal: (…) II – a interdição do exercício de cargo ou função pública de qualquer natureza e de diretor, de membro de conselho de administração ou de gerência das pessoas jurídicas referidas no art. 9º, pelo dobro do tempo da pena privativa de liberdade aplicada”.
(14) Lei 9.613/1998: “Art. 9º Sujeitam-se às obrigações referidas nos arts. 10 e 11 as pessoas jurídicas que tenham, em caráter permanente ou eventual, como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não: I – a captação, intermediação e aplicação de recursos financeiros de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira; II – a compra e venda de moeda estrangeira ou ouro como ativo financeiro ou instrumento cambial; III – a custódia, emissão, distribuição, liquidação, negociação, intermediação ou administração de títulos ou valores mobiliários. Parágrafo único. Sujeitam-se às mesmas obrigações: I – as bolsas de valores e bolsas de mercadorias ou futuros; II – as seguradoras, as corretoras de seguros e as entidades de previdência complementar ou de capitalização; III – as administradoras de cartões de credenciamento ou cartões de crédito, bem como as administradoras de consórcios para aquisição de bens ou serviços; IV – as administradoras ou empresas que se utilizem de cartão ou qualquer outro meio eletrônico, magnético ou equivalente, que permita a transferência de fundos; V – as empresas de arrendamento mercantil (‘leasing’) e as de fomento comercial (‘factoring’); VI – as sociedades que efetuem distribuição de dinheiro ou quaisquer bens móveis, imóveis, mercadorias, serviços, ou, ainda, concedam descontos na sua aquisição, mediante sorteio ou método assemelhado; VII – as filiais ou representações de entes estrangeiros que exerçam no Brasil qualquer das atividades listadas neste artigo, ainda que de forma eventual; VIII – as demais entidades cujo funcionamento dependa de autorização de órgão regulador dos mercados financeiro, de câmbio, de capitais e de seguros; IX – as pessoas físicas ou jurídicas, nacionais ou estrangeiras, que operem no Brasil como agentes, dirigentes, procuradoras, comissionárias ou por qualquer forma representem interesses de ente estrangeiro que exerça qualquer das atividades referidas neste artigo; X – as pessoas jurídicas que exerçam atividades de promoção imobiliária ou compra e venda de imóveis; XI – as pessoas físicas ou jurídicas que comercializem joias, pedras e metais preciosos, objetos de arte e antiguidades; XII – as pessoas físicas ou jurídicas que comercializem bens de luxo ou de alto valor ou exerçam atividades que envolvam grande volume de recursos em espécie” (Redação anterior à Lei 12.683/2012).

 
AP 863/SP, rel. Min. Edson Fachin, julgamento em 23.5.2017. (AP-863)
 
Fonte: http://www.stf.jus.br